* Em Charlotte
Com dez anos vividos na formação do Benfica e depois de mais quatro anos entre V. Guimarães e Estoril, Iuri Tavares deixou Portugal para a primeira aventura no estrangeiro.
Cruzou o Atlântico e desembarcou nos Estados Unidos, mais concretamente em Charlotte, onde cumpre a terceira época na equipa da cidade, que milita na MLS. «Ao início eu não estava muito virado para aceitar», diz, sentindo agora, dois anos e meio depois, que tomou a decisão certa e que é hoje um jogador mais valorizado quando deixou o Estoril. Apesar de feliz, quer voltar à Europa. «Foi sempre o meu objetivo. E estou a considerar, porque tenho clubes interessados em Portugal e fora de Portugal.»
Em entrevista ao Maisfutebol, o jogador de 24 anos falou sobre os objetivos do Charlotte FC, do patamar competitivo da MLS, do efeito Messi e, claro, dos muitos anos na formação do Benfica, que o moldaram como jogador e homem, dos melhores companheiros de equipa que apanhou e ainda dos treinadores que mais o marcaram.
Maisfutebol – Foram dez anos na formação do Benfica. Que sentimento ficou?
Iuri Tavares – Aaaaahhhh [suspiro]. O Benfica e é será sempre um clube especial para mim. Sou fanático pelo clube e serei sempre. E sempre fui, desde muito miúdo, mesmo antes de ir para o Benfica. Estive lá 10/11 anos e sou grato por tudo o que fizeram por mim. Vim de um bairro problemático – o Bairro dos Navegadores em Talaíde, Oeiras – e eles tiraram-me de lá e puseram-me a viver na academia desde os 13 até aos 18/19 anos. Fizeram isso porque acreditavam muito nas minhas capacidades e nunca vou esquecer o que fizeram por mim. Claro que o caminho foi diferente. Eu, como qualquer criança, sonhava jogar no Estádio da Luz.
Ficou alguma mágoa por não ter conseguido chegar lá acima?
Não me ficou mágoa porque sei que as coisas acontecem de uma determinada forma porque têm de acontecer. Claro que tinha o sonho de chegar lá, como todos os outros, mas sou um privilegiado e não posso reclamar de nada, porque sou jogador profissional, estou aqui a jogar em Charlotte, nos Estados Unidos, e tenho das melhores condições de trabalho do Mundo. Não fica mágoa, mas fica aquele sentimento: «Porra, jogar no Estádio da Luz era um sonho de criança…»
É um sonho que ainda alimenta?
Alimento, claro que alimento. É o meu clube do coração e se um dia lá voltasse e tivesse a minha família toda a ver-me seria o realizar de um sonho. Mas não deixou de ser especial: foram dez anos maravilhosos. O Benfica deu-me tudo: formou-me como jogador e como homem e tudo o que eu sei e aprendi, mesmo nas dificuldades, foi graças às pessoas do clube, que me fizeram seguir regras e ver a vida de uma maneira que eu não via. Ao cresceres no bairro, não tens regras. E quando eu saio do bairro e vou para a academia, a minha vida muda completamente. Nesta vida temos de seguir regras e se não formos disciplinados e profissionais, dificilmente chegamos onde queremos e mais cedo ou mais tarde acabamos por pagar. Principalmente no futebol profissional, em que um erro faz a diferença. Então, temos de ser profissionais para que as coisas nos corram bem. Não tive oportunidade também porque houve momentos em que falhei, por ser miúdo e não ser suficientemente profissional para que as coisas corressem bem. Mas também há coisas que não controlamos. Mas temos de trabalhar e ser sempre profissionais para que ninguém nos possa apontar nada. Mas só posso dizer coisas boas do Benfica: se não me tirassem do bairro, eu se calhar hoje eu não era jogador profissional e não tinha a mentalidade que tenho nem via a vida da mesma forma. Serei sempre grato.
Lembra-se bem da sua chegada ao Benfica e de como é que o descobriram?
Então não me lembro? [risos] Eu tinha oito anos ou nove anos e na altura jogava futsal. Eles tinham-me visto num torneio em que tinha feito muitos golos e assistências. No dia em que eu fui treinar ao lado do Estádio da Luz, eu estava na escola e o Benfica foi lá buscar-me para ir treinar. Mas não tinham autorização da minha mãe, ela estava a trabalhar e não conseguiam entrar em contacto com ela.
E depois?
Havia um senhor lá do bairro, o senhor Manuel, que tinha um clube de atletismo. Recrutava a malta do bairro para o atletismo e ia a campeonatos contra atletas do Benfica, do Sporting e tudo mais. Foi ele a minha sorte: foi ele que fez com que as coisas acontecessem, porque eu estava na escola e a diretora não me ia libertar sem a autorização da minha mãe, que não respondia. E eu disse-lhe: «Está ali o senhor Manuel, que é do bairro, conhece a minha mãe, e não há problema se eu for com ele.» Houve ali uma guerra, porque se acontecia alguma coisa a responsabilidade era dela, mas lá me deixou sair para ir treinar. E o senhor Manuel acompanhou-me ao treino.
E correu bem.
Normalmente fazemos captações de uma ou duas semanas e eles dão a resposta depois. Mas eu fiz só um treino e fizeram o contrato logo no balneário: «Nós vamos contigo para casa para a tua mãe assinar o contrato.» E a minha mãe ainda sem saber de nada. Eu antes já lhe dizia: «Um dia vou jogar no Benfica, um dia vou jogar no Benfica.» E ela respondia-me: «Tens de trabalhar para isso, tens de trabalhar.»
E, entretanto, aparece lá em casa de surpresa com pessoas do Benfica?
Cheguei lá com o olheiro e a minha mãe: «Quem é que este?» Não estava a perceber nada. Nem sabia onde é que eu tinha andado, mas isso era normal no bairro. Lá está: não tens muitas regras. O meu pai é que ditava as horas para estar em casa, mas nem ele sabia. Chego a casa, o olheiro entra com a identificação do Benfica e a minha mãe, de tão emocionada que estava, assinou o contrato sem ler. E eu na altura precisava de transportes, porque a minha mãe e o meu pai não tinham possibilidades de me levar para os treinos, que iam ser nos Pupilos do Exército. O meu pai levou-me umas vezes para os treinos, mas depois já não tinha mais disponibilidade. A minha mãe disse ao Benfica e eles arranjaram transporte na hora. Acreditaram muito, desde aquela altura, no meu talento. Não foi à toa que me tiraram do bairro e levaram-me para a academia.
A competitividade na formação de um clube como o Benfica é enorme. Quem eram os seus concorrentes na sua posição?
Nas minhas posições. Eu joguei a extremo-esquerdo, a extremo-direito, a 9, a 10, a 8… Joguei em todas as posições do 8 para cima. Na minha geração eram só craques: O Jair Tavares, o Umaro Embaló, o Ronald Camará, o Gonçalo Ramos, o Tiago Araújo, o Bernardo Silva, o Henrique Jocú, o Alexandre Penetra, o João Monteiro, o Zé Gata. Era uma geração inacreditável. Fizemos o campeonato sub-15 [iniciados] com o Luís Nascimento, que é irmão e adjunto do Bruno Lage, sem uma única derrota: só com vitórias e um empate no último jogo. Íamos fazer história. Fomos campeões e depois também ganhámos nos Juvenis B e Juvenis A, ao FC Porto por 5-0 no Seixal com o Renato Paiva. Golos do Ramos, do Ronald, um meu e um do Sandro Cruz. O FC Porto só precisava de um empate para ser campeão e nós demos cinco. Lembro-me que a nossa geração foi ao Europeu sub-17 e não passou da fase de grupos. A seleção era quase toda composta por jogadores do Benfica. Então, sportinguistas e portistas falaram muito disso, mas depois de ganharmos o campeonato com uma vitória por 5-0 tiveram de esquecer essa história. O Europeu não correu bem, mas a nossa geração tinha muitos nomes. Havia também o [Tiago] Gouveia, que tinha acabado de chegar do Sporting. A nossa geração era uma coisa assustadora.
Qual foi o jogador mais impressionante que apanhou na formação do Benfica?
Da minha geração?
Sim.
Vou dizer dois: o Ronald Camará e o Bernardo Silva, que tratávamos por Benny. Tinham uma qualidade técnica e visão de jogo… eram muito diferenciados. Nós tínhamos muita técnica: eu, o Hugo Nunes, o Umaro Embaló ou o Jair Tavares. Havia vários com muita qualidade técnica, mas esses dois tinham o pacote completo. Tinham técnica e pensavam o jogo de forma diferente. Faziam passes que acabavam completamente com uma equipa. É lindo ver isso no futebol.
São dois jogadores que não conseguiram, no Benfica, dar continuidade a essa expectativa. Acontece com muitos.
Sim. É difícil explicar. Mas tudo, a nível profissional e pessoal, tem influência. Posso falar por mim: vim de uma realidade que não é fácil. Não me faltou nada, mas o contexto que eu tive não foi nada fácil e podia ter-me impedido de chegar a profissional. Há coisas que não controlamos, que acontecem nas nossas vidas e não conseguimos dar a volta por cima. Por vezes pode parecer que tudo é perfeito dentro do campo, mas fora dele não sabemos o que se passa e são coisas que podem mexer com a cabeça. Por vezes também podemos ser exemplares no comportamento, na resiliência e na disciplina, mas passamos por injustiças que nos deitam abaixo. Acontecem coisas que não controlamos e há muitos fatores que podem ter influência nas nossas carreiras. Exemplos como os nossos há muitos. É a vida, mas ainda somos novos. Temos 24 anos e há jogadores que chegam aos 27 anos à seleções nacionais. Isto está longe de acabar, assim como não acabou para mim quando eu estava nos sub-23 do Vitória e do Estoril e tinha vários antigos colegas a jogar em primeiras ligas e até a Champions League. A vida são altos e baixos e temos de saber lidar com isso da melhor maneira. Hoje estou aqui em Charlotte e já defrontei o Messi algumas vezes. Tenho de ser grato pela vida que tenho.
E como é partilhar o campo com o Messi?
Aaaaaahhhhh, esquece. Consegui tirar-lhe a bola uma vez [risos]. Eu até podia nem ter entrado no jogo. Já estava feliz só por poder vê-lo à frente. Poder jogar contra ele é um sonho realizado. Recebi mensagens de amigos a dizerem-me: «Porra, estás a defrontar o Messi, que sonho. Olha onde já chegaste?!» E isso dá ainda mais força: tive colegas que não conseguiram chegar mais alto, mas que torcem por mim e que ficam felizes.
E como lidou com a saída do Benfica quando foi para o V. Guimarães ao fim de dez anos na mesma casa?
Não vou mentir: doeu. Eu tinha o sonho de chegar à equipa principal e jogar no Estádio da Luz e quem disser que não dói sair do clube do coração depois de tantos anos lá, está a mentir. Dói. Mas não tive muitas dificuldades em fazer essa transição, porque tenho muita facilidade em seguir para a frente e adaptei-me bem ao Vitória. Mas depois veio o covid e as coisas complicaram-se. Doeu, sim, mas não foi o fim do Mundo.
No Benfica tinha referências na equipa principal?
Na equipa principal, não. Mas olhava muito para os outros jogadores da formação.
Para quem?
Houve tantos. O Jota, que joga no Celtic, o Nuno Santos, que está no V. Guimarães, o Romário Baldé, o Hélder Costa. E o João Félix… pfffffff. Podem criticar-me ou dizerem o que quiserem, mas aquele rapaz tem talento para Bola de Ouro. É contexto. O futebol é tudo sobre contexto: se estiveres no sítio certo, não tem como dar errado. Mas é muito difícil encontrar o melhor contexto no futebol. Acho que ele podia ter tido o contexto certo no Barcelona, mas o clube não atravessava uma boa fase. Se estivesse a atravessar, eu acho que ele ia voar no Barcelona. As pessoas de fora dizem que não trabalham e que não querem saber, mas não é nada disso: os jogadores mais talentosos são os que mais trabalham e os que são mais perfecionistas. É o contexto. O Vitinha também teve dificuldades no Wolves e hoje é o melhor médio do Mundo.
Falou há pouco dos melhores jogadores que apanhou. E treinadores?
Tive vários, mas o Renato Paiva foi o treinador que mais me marcou. Ele dizia que íamos sofrer um golo de uma determinada forma e acontecia. Mesmo sofrer! Lembro-me que nos Juvenis A estivemos uma semana a treinar bolas paradas em que havia um cruzamento e o Sporting atacava muito o primeiro poste pelo Gonçalo Inácio, que fazia muitos golos dali. E ele fez-nos golo dali, mesmo onde o mister Renato disse que nós tínhamos de defender. Acho que ganhámos 3-1, mas aquilo aconteceu. Ele dizia: «A bola vai cair aqui, isto e aquilo vai ser assim. E era. Era muito inteligente.
Que mais o distinguia dos outros treinadores?
Ele era uma pessoa que fazia com que todos se sentissem importantes. Claro que uns jogavam mais e outros menos. Houve muitas alturas em que eu jogava menos, mas entrava e tinha vontade de fazer o meu trabalho. Quando ganhámos ao FC Porto 5-0, ele disse-me: «Tu vais entrar e vais fazer um golaço.» E entrei e fiz um golaço na primeira vez em que toquei na bola. Ter um treinador sincero, que sabe dizer as coisas sem magoar, é ótimo. Toda a gente diz que o Renato foi um treinador marcante. É impossível não falar dele.
E mais?
Também gostava muito do Luís Nascimento. Se bem que tive um dos anos mais difíceis com ele. Quase não joguei e tive também muitos problemas pessoais e profissionais. Foi um ano muito difícil, mas aprendi muito com ele. Ensinava-me e era um treinador duro. E eu precisava disso na altura, embora não conseguisse ver isso. Agora olho para trás e ainda bem que ele foi duro comigo e me disse certas coisas. E só dizia porque acreditava em mim. Um treinador que está sempre em cima de ti é um treinador que quer o teu bem. E eu passei por isso com ele.
Já sei que não vai conseguir ver o Benfica-Bayern.
Não, porque viajamos para jogar com o Sporting Kansas City.
E que expectativas tem para o jogo?
Vai ser um jogo muito difícil, mas tudo pode acontecer. Quem diria que o Botafogo ia ganhar ao PSG? Se calhar, nem os fãs do Botafogo acreditavam que fosse possível. E foi: jogaram bem e o PSG nem teve muitas oportunidades de golo. E «nós» somos o Benfica. Com todo o respeito, somos melhores do que o Botafogo. Não é impossível ganhar ao Bayern.
E expectativas em relação às possibilidades do Benfica no Mundial de Clubes?
Acredito que possa ir longe. Vai ser difícil, porque nenhuma equipa está a facilitar. Até as equipas brasileiras e mexicanas estão a ter bons resultados. O próprio Al Hilal fez um grande jogo com o Real Madrid. Ninguém vai facilitar, mas dá para ir longe. Tudo pode acontecer e isso é o que mais tem acontecido neste Mundial de Clubes. É a prova de que o futebol está a evoluir em todo o lado.